A doença do Muro
O que é triste não é o muro de aço dividindo a paisagem que Lúcio Costa projetou como espaço cívico de liberdade. O que é triste não é ver a cidade que Niemeyer imaginou (não sem críticas) como área comum, sob uma noção de igualdade e de direito que remete à famosa Carta de Atenas, de 1933. O que é mais triste não é que Brasília tenha erguido, a essas alturas, no coração do poder, o muro que pretendeu dispensar desde o princípio. E nem que ele se disponha em frente ao congresso, suprimindo qualquer utopia contida na palavra que deveria simbolizar a nossa união. O que é lamentável no muro não é seu material, nem apenas seu conteúdo político, os sonhos que ele devora com seus dentes de aço, os mundos que ele separa e contrapõe, os futuros que ele gerencia. Tudo isso é mesmo deplorável, é verdade. Ainda mais porque está contido na divisória, a infantilização da política pelo mal preguiçoso do maniqueísmo e os potenciais violentos que a discórdia delirante incuba sob os holofotes. Tudo isso é muito deplorável, é verdade, e medra como lodo nas paredes do aço.
O mais grave, contudo, não é o muro, é a “doença do muro”. A expressão foi cunhada pelo psicólogo Dieftried Muller-Hegemann para explicar a situação das famílias que foram separadas pelo muro berlinense. Serve para nós. Recorro a ela para pensar na vontade de divisão, na ambição pelo privilégio, na aspiração de imunidade e regalia. O que é mais grave, por isso, é o que o muro de Brasília esconde. O incômodo da presença do estranho, a revolta contra as minorias, a violência contra as mulheres, a discriminação contra os negros e indígenas, o preconceito contra os homossexuais, o medo dos pobres, principalmente daqueles que se organizam (pobre sozinho é motivo de caridade, pobre organizado é, comunista e bandido, ensejo de ódio). O mais grave são os muros invisíveis, os muros introjetados pela mídia, os muros que não serão retirados nunca mais, a cicatriz dos muros, os muros sedimentados no espírito, obdurados nos calendários de agora em diante. O mais grave são as tecnologias de classificação que todo muro requer, com os estereótipos que ele cria, as agressões posteriores que ele dissemina e os boicotes que alastra nos cotidianos.
O mais grave não é que o muro divida, mas que ele esconda, proteja, apadrinhe. Que ele desvie o olhar. Que ele encubra o outro lado. O que é grave no muro são as falcatruas que o ergueram e que ele agora autoriza. A desfaçatez da política da sabotagem, a agressividade das práticas de vingança e todas as suas pautas-bomba, a corrupção endêmica, o aviltamento, a canalhice, os interesses escusos, os patrocínios privados, os abusos do poder, os benefícios familiares, as fraudes de final de noite e de domingos à tarde. O mais grave é que o muro tenha sido erguido para manter essas práticas: concentrar os pecados é a melhor estratégia para encobrir vícios que são de todos.
Elisabeth Vallet, da Universidade do Quebeque, teve especial interesse pelos muros. Segundo suas contas, quando caiu o de Berlim, existiam 16 outros muros ao redor do mundo. No ano passado ela registrou um dado preocupante: o número tinha aumentado para 65 muros prontos ou em construção. Cada um com seu motivo. Muros do apartheid, barreiras contra a imigração ilegal, diques de areia contra rebeliões, cercas de segurança contra o perigo do estranho que mora ao lado. Vamos ter de contar para a professora Vallet sobre o muro de Brasília que, como os outros, tem seus rituais de ódio. Será preciso dizer a ela, contudo, que estes gomos de metal simbolizam uma sociedade que está geneticamente estruturada em torno de divisões, desde as Sesmarias, as Capitanias Hereditárias, a lei de terras e todos os latifúndios e coronelismos de sempre, no campo e na cidade. Teremos de falar a ela das estruturas compridas que cercam os condomínios da nossa classe média-alta – que Bauman chamou de “guetos voluntários” – e dos paredões que nos protegem de nossos vizinhos. Teremos de explicar as fronteiras que nos dividem e contra as quais alguns de nós precisam lutar durante toda a vida. Dizer a ela, por exemplo, que desde que nascemos estamos divididos entre quem tem seguro de saúde ou não, quem estuda em escola particular ou não, quem mora em casa própria ou não, quem pode estudar em universidade pública ou não, quem pode comer ou não, quem pode viver ou não, quem vai para o céu ou não…
O muro de Brasília estampa a divisão de um povo historicamente cindido. E ele mal disfarça, indecentemente, as políticas que foram, ao longo do tempo, responsáveis por essa divisão. O muro de Brasília não demarca fronteiras para o mercado, não limita o vai e vem dos dinheiros (quase sempre sujos e ensanguentados), não impõe regras para a dinâmica apropriadora da lógica consumista e suas inúmeras formas de catástrofe. O muro de Brasília não detém o saque cotidiano das nossas riquezas naturais. Não restitui os direitos das vítimas do muro rompido de Mariana. Não derruba as cercas da terra e do poder. O muro de Brasília só cria uma ilusão ótica capaz de garantir a continuidade da separação social, para que tudo, afinal, volte a ser como sempre foi. O que, parece, é o desejo de muita gente…
Porque acastela a corrupção que persiste acima da divisória e porque entrega o poder a quem quer manter as divisões, o muro de Brasília, infelizmente, só protege os que já estão protegidos. Ele é uma extensão dos muros da desigualdade social que fazem do nosso, um país de castas. A maioria da população – talvez eu e você – está do lado de cá, como sempre, desamparada. Sinto informar, mas enquanto a doença do muro persistir, não haverá segurança em nenhum dos lados.
Prof. Dr. Jelson Oliveira – Professor do Programa de pós-graduação em filosofia e do Programa de pós-graduação em direitos humanos e políticas públicas.