Direitos Humanos e questão de gênero

Um dos grandes insights da reflexão feminista da década de 70 foi o conceito de gênero, período que marca a entrada do conceito na academia. Os estudos sobre as mulheres não davam conta de problematizar o universo de sua inserção. A condição feminina não podia ser compreendida de maneira isolada, da estrutura social e cultural que o feminismo apontava como opressora das mulheres, e que englobava homens também – tanto como dominadores quanto como oprimidos. Deste modo se fez necessária a criação de uma nova categoria de análise para pensar estas relações de poder que envolvem especialmente homens e mulheres: o gênero.

O gênero é independente do sexo – anatômico biológico – e da sexualidade – desejo sexual -, é uma construção sócio cultural de práticas cotidianas simbólicas (desde performances físicas como a maneira de caminhar, de vestir-se, portar-se a escolhas, gostos, formas de agir e etc.) reconhecidas na perspectiva da heteronormatividade, como definidoras de masculinidade ou feminilidade, ou seja, definidoras de identidade de gênero. Dessa forma, o sistema de gênero se organiza numa estrutura relacional; em nossa sociedade a feminilidade tradicionalmente só pode ser definida e compreendida em contrapartida a masculinidade, que padrões de comportamentos diametralmente diferenciados para homens e mulheres.

Alguns dados sobre a violência contra as mulheres

No tocante as mulheres, os desafios para uma verdadeira equidade, são enormes, pois se na esfera jurídica podemos observar que as mulheres têm sido reconhecidas como sujeitos plenos; se a história ainda nos indica que houve efetivamente um lento processo de luta pela igualdade e liberdade, resultando na autodeterminação das mulheres garantida pelos direitos civis e políticos, a verdade é que na esfera da ação, da prática cotidiana, se trata muito mais de reativar permanentemente a luta pelo direito a ter direitos do que propriamente comemorar as conquistas adquiridas. Como indicamos, o grande desafio em nossa época é o exercício efetivo desses direitos, o que demanda a tomada de posição sobre a situação concreta das mulheres. Nesse sentido, nossa experiência aponta que existe uma zona de nebulosidade entre, de um lado, conquistas jurídicas indiscutivelmente importantes para as mulheres e, de outro, a permanência de antigas formas de violência relacionadas à sua condição e maneira de ser.

No caso do Brasil, é aviltante constatar como as conquistas formais e jurídicas convivem com diversas formas de violência sobre as mulheres, até mesmo depois de leis promulgadas especificamente para inibi-las. Ser mulher no Brasil significa ter um grau de vulnerabilidade muito maior que ser homem. Além disso, as formas de violência e sua intensidade se multiplicam em razão de sua condição étnica, desigualdade social e orientação sexual.

Estima-se que os dados sobre atos de violência contra a mulher sejam muito mais numerosos do que os poucos registrados, bem como os casos de vítimas fatais decorrentes destes. No Brasil de 2000 a 2010 a violência fatal atingiu mais de 50 mil mulheres (WAISELFISTZ, 2012,). Segundo o Instituto Avante Brasil[1], a cada hora, uma mulher é assassinada no país. Em 2013 ocorreram 4.762 mortes de mulheres por meios violentos no Brasil, ou seja, 4,7 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres. Entre 1996 e 2013, houve crescimento de 29,3% nas mortes.

E dentro de uma realidade de violência o quadro mais alarmante diz respeito às mulheres negras, pois, a década de 2003 a 2013 evidencia um aumento de 54,2% no total de assassinatos desse grupo étnico, saltando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Aproximadamente mil mortes a mais em 10 anos. Esses dados são do “Mapa da Violência de 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil”, resultado de um estudo realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), por solicitação da ONU Mulheres[2]. O estudo denuncia que em 2013, morreram assassinadas proporcionalmente ao tamanho das respectivas populações, 66,7% mais meninas e mulheres negras do que brancas, segundo o Portal Brasil[3]. São dados que lamentavelmente colocam as mulheres negras em um medonho e sinistro ranking: as maiores vítimas de homicídio no país. Nascer mulher já é um grande risco em praticamente todas as culturas. Nascer mulher e negra se torna um perigo ainda maior. E, as condições de periculosidade aumentam, dependendo da condição social, do local e da cultura.

No Brasil, se for lésbica, transmulher, por exemplo, as condições para a violência são maiores. Os dados atualizados pelo governo federal através do balanço semestral do Disque Direitos Humanos, o Disque 100[4], onde constata-se o aumento das denúncias sobre a violência física e psicológica mais recorrentes entre a população LGBT[5] e também entre a população trans. Amapá, Paraíba, Pernambuco e Distrito Federal são os estados que configuram como os mais violentos para as mulheres, onde os índices ultrapassam os 300%, segundo o referido estudo.

De acordo com uma avaliação global da ONU, de 2013, 35% das mulheres no mundo já sofreram violência física e/ou sexual por parceiro íntimo ou violência sexual por um não parceiro. No entanto, alguns estudos nacionais sobre a violência mostram que até 70% das mulheres já experimentaram violência física e/ou sexual em sua vida perpetrada por um parceiro íntimo. Estima-se que de todas as mulheres mortas em 2012, quase metade delas foi por parceiros íntimos ou membros da família. (Dados do Instituto Avante Brasil[6])

A violência usa a estratégia do medo. Trata-se de uma estratégia de domesticação, de silenciamento, de submetimento. Certamente não existe tática mais eficaz para submeter uma pessoa do que o medo. Infelizmente, diante dos dados sobre a violência, entendemos que os riscos não são imaginários.

A luta constante contra o quadro de violência, que se constitui em um longo e inclemente flagelo contra as mulheres, resultou em uma grande conquista em 2015 com a promulgação da Lei número 13.104/15 sobre o feminicídio, conceito utilizado para explicitar a morte intencional de pessoas do sexo feminino. E, se trata de uma política de violência contra as mulheres.  O feminicídio foi qualificado como um tipo de homicídio, incluído no rol dos crimes hediondos, ou seja, aqueles crimes de extrema gravidade e com requinte de crueldade, ou seja, com mórbidos detalhes que tenham uma íntima relação com o gênero, como por exemplo, a extirpação dos seios. Crimes que exigem maior severidade por parte da justiça. São inafiançáveis e não podem ter a pena reduzida.

Os agravantes que podem aumentar o tempo da pena em 1/3 dizem respeito ao feminicídio ocorrido na gestação ou no pós-parto até os três meses posteriores. Quando a vítima é menor de 14 anos, maior de 60 ou se trata de uma pessoa com deficiência. E, quando o crime de feminicídio ocorre na presença de descendente ou ascendente da vítima.  Homicídios qualificados como o feminicídio têm pena que vai de 12 a 30 anos. Já os homicídios simples preveem a reclusão de 6 a 12 anos.  Indiscutivelmente uma conquista no campo de gênero, pois os casos de violência familiar e doméstica, menosprezo e discriminação contra a condição da mulher passam a ser vistos como qualificadores do crime.

A lei do feminicídio é extremamente importante, pois torna evidente a necessidade de medidas eficazes contra os altíssimos níveis de violência contra a mulher no Brasil. E escancara para toda a sociedade a existência de homicídios de mulheres por questões de gênero.

A violência, seja qual for a sua faceta, é uma chaga danosa e feroz que nega a dignidade humana, produzindo muitas vítimas dentro de um mesmo espaço geográfico, em uma relação de poder. Algumas por protagonismo, outras por passividade e outras ainda, por conivência. São modalidades e proporções diferenciadas, mas todas não são isentas de violência. Produzem relações de dominação, com limites, sujeição e servidão àquele (a) que se submete. E, se reproduzem de forma perene, atentando contra a dignidade humana.

A violência contra as mulheres aparece como uma horrorosa estratégia de dominação que nos leva a questionar de forma inquietante por que ao longo da história, há tanto empenho em sua naturalização. Tanta dedicação e interesse na sua dominação e controle em todos os hábitos e circunstâncias. Em muitas relações e situações a mulher é vista como mercadoria sobre a qual se exerce o poder. O mercado do sexo é um bom exemplo, onde as mulheres são mercadorias à venda, compradas e utilizadas por quem tem dinheiro.

As violências são decorrentes desse sentimento geral de posse. Um ato de possessividade em relação ao outro que é despersonalizado e entendido como objeto de pertencimento. Os atos de violência acontecem quando seu consentimento se fragiliza ou quando é questionado nessa relação de posse. Não consentir é não mais aceitar, não mais desejar, não mais se acomodar. É se rebelar ou questionar esse “pertencimento”. Nesse sentido o sofrimento pode advir tanto do ato da insubordinação, fruto da compreensão, como também da passividade excessiva, da submissão por falta de consciência esclarecida.

Portanto os estudos sobre gênero e direitos humanos mostram as implicações e desafios colocados para a equidade. É preciso, através do conhecimento, buscar e construir mecanismos que possibilitem novos avanços no que diz respeito ao exercício da cidadania, e combate às violências que dificultam e impedem uma sociedade menos injusta e desigual, mais tolerante e respeitosa.

 

[1]Segundo informações disponibilizadas no site, o Instituto Avante Brasil – IAB (Instituto da Prevenção do Crime e da Violência) é uma entidade sem fins lucrativos e que tem por escopo facilitar o acesso às informações e pesquisas sobre os mais diversos temas acadêmicos e científicos. O Instituto nasceu para realizar pesquisas, criar fontes de dados, acompanhar e avaliar as diversas políticas adotadas e implementadas pelas autoridades e, sobretudo contribuir para a elaboração de políticas públicas nas suas áreas de atuação. Maiores informações disponíveis em:  (www.institutoavantebrasil.com.br). Acesso em 10 de janeiro de 2016.

[2]Entidade das Nações Unidas para a Igualdade e o Empoderamento das Mulheres. Foi criada em 2010 e “trabalha com as  premissas fundamentais de que as mulheres e meninas  ao redor do mundo têm o direito a uma vida livre de discriminação, violência e pobreza, e de que a igualdade de gênero é um requisito central para se alcançar o desenvolvimento”. Maiores informações consultar o site da entidade, no seguinte endereço: https://nacoesunidas.org/agencia/onu-mulheres/. Acesso em 10 de janeiro de 2016.

[3]http://www.brasil.gov.br/defesa-e-seguranca/2015/11/mulheres-negras-sao-mais-assassinadas-com-violencia-no-brasil. Acesso em 04 de janeiro de 2016.

[4]É um serviço de utilidade pública da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), vinculado a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, destinado a receber demandas relativas a violações de Direitos Humanos, em especial as que atingem populações com vulnerabilidade acrescida, como: Crianças e Adolescentes, Pessoas Idosas, Pessoas com Deficiência, LGBT, Pessoas em Situação de Rua e Outros, como quilombolas, ciganos, índios, pessoas em privação da liberdade. O serviço inclui ainda a disseminação de informações sobre direitos humanos e orientação acerca de ações, programas, campanhas e de serviços de atendimento, proteção, defesa e responsabilização em Direitos Humanos disponíveis no âmbito Federal, Estadual e Municipal.

[5]LGBTTs é a sigla utilizada para definir lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e Transgênero. A sigla simboliza todas as orientações sexuais minoritárias e manifestação de identidades de gênero, divergentes do sexo designado no nascimento,

[6] O Instituto Avante Brasil – IAB, segundo informações diponibilizadas no site do Instituto, busca a Prevenção do Crime e da Violência. “é uma entidade sem fins lucrativos e que tem por escopo facilitar o acesso às informações e pesquisas sobre os mais diversos temas acadêmicos e científicos”. Para maiores informações: http://institutoavantebrasil.com.br/o-instituto/. Acesso em 15 de fevereiro de 2016.

 

Profª Darli Sampaio NDH/PUCPR